A paixão da imagem por Angelo Oswaldo
O historiador francês Germain Bazin, fascinado pela obra do Aleijadinho, afirmou que Deus aparece pela última vez na arte do Ocidente pelas mãos estropiadas de um mestiço brasileiro. Mas Jesus Cristo ressuscita, ainda agora, na pintura de Mario Mendonça. A paixão da temática cristocêntrica faz com que, ao longo de meio século, Jesus reapareça, em sucessivas imagens, nessa singularíssima criação plástico-visual.
Nascido no Rio de Janeiro, cidade com a qual divide o amor por Tiradentes, a antiga São José del-Rei, onde criou um belo museu, o artista sempre se dedicou à figura do Cristo. De tal modo dá-se essa fixação que a sua fisionomia pessoal plasmou muitas vezes a imagem predileta. Identifica-se no retrato do Senhor tornado espelho da alma.
Mendonça mantém, pela via pulchritudinis, a ligação luminosa com o sagrado. O arauto da Boa Nova arrebata-o e se projeta, reiteradamente, em diferenciadas interpretações, mas tocadas, todas elas, pelas características peculiares do pincel do artista. A partir de ícones dos primórdios, ele chega ao “vero ícone” espelhado em suas verônicas.
Quatro faces de Cristo de grandes dimensões apresentam-se na Cidade das Artes. Como no sudário, o rosto do Mestre transparece na pintura sob o impacto de uma transposição mística. A visualidade concebida pelo artista evidencia o domínio técnico, mas emerge, tal como Bazin identifica no Aleijadinho, de uma força interior movida pelo primado espiritual. “Penetrei onde não soube/ e fiquei não o sabendo,/ toda a ciência transcendendo”, diz um poema de São João da Cruz, e o pintor da Sagrada Face retira desse mais profundo sentimento o retrato sonhado. Seu próprio coração cadencia o movimento do gesto sobre a tela.
A Última Ceia, de 1968, remete o espectador aos momentos iniciais da trajetória do pintor, em cujo percurso referenciam-se trabalhos da década de 1980, a fim de que se tenha uma ideia do conjunto da obra. Don Quixote tem o condão de levar Mario Mendonça da Estrada de Emaús para os campos da Mancha, mas logo ei-lo de novo às portas de Jerusalém para pintar mais um flagrante do Pastor que saiu a semear a palavra.
A contemplação do Cristo faz de Mario Mendonça uma expressão admirável da arte sacra no Brasil. Na lista dos diversos templos em que trabalhos de sua autoria podem ser encontrados, acham-se a Igreja da Ressurreição, entre Copacabana e Ipanema, e a Capela do Bom Jesus da Pobreza, em Tiradentes. Nesta, a Via Crucis revela a originalidade dos recortes praticados na sequência narrativa que há quase dois mil anos motiva os artistas.
Mario Mendonça celebra a transfiguração de Jesus Cristo na sua catedral interior, e pela Cidade das Artes alcança-se dela hoje a grande nave.
Angelo Oswaldo de Araújo Santos é escritor e curador de arte. Exerce o quarto mandato de prefeito de Ouro Preto, MG, tendo sido presidente do IPHAN e do IBRAM e secretário de Estado de Cultura de Minas Gerais. Recebeu a Légion d”Honneur e a Ordre des Arts et des Lettres (França), a Ordem de Isabel, a Católica (Espanha) e a Ordem do Infante Dom Henrique (Portugal).
SOBRE O PINTOR MARIO MENDONÇA
Mario Mendonça nasceu no Rio de Janeiro em 6 de agosto de 1934. Pintor e desenhista autodidata, formou-se em Direito mas nunca exerceu a profissão: a arte falou mais alto. “Na infância, quando a professora pedia para escrever uma letra, eu desenhava um cavalo. Era mais fácil.” Na década de 60, frequenta cursos de pintura de Ivan Serpa e Aluisio Carvão no Museu de Arte Moderna, e de modelo vivo com Caterina Baratelli. “Aluisio Carvão foi meu mestre definitivo”.
Suas principais exposições individuais no exterior foram em Nuremberg, 1989; Paris, 1988; em 1987, Sophia – onde Mario Mendonça e Candido Portinari representam a pintura brasileira na Bulgária; Roma, 1982; Madrid, 1979; e em 1970, Portugal e Berlim. No Brasil, as individuais mais significativas foram: 34 Quixotes – desenhos, em 2005, comemorando os 400 anos da obra de Cervantes na Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro; em 2004, retrospectiva da obra do artista na Galeria Cândido Portinari, da UERJ; em 2000, inaugura a primeira mostra do milênio no Museu Nacional de Belas Artes; e em 1985, a Fundação Roberto Marinho e a Arquidiocese do Rio organizam exposição, com 115 quadros, na Casa do Bispo.
Momentos marcantes na vida do artista: Grande Medalha de Honra da Inconfidência, entregue pela presidente Dilma Rousseff, em Ouro Preto; comenda Colar do Mérito José Maria Alckmin, do Tribunal de Contas de Minas Gerais; Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro; Título de Cidadão de Honra de Tiradentes (MG); e prêmio São Sebastião, da Associação Cultural da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, pelo conjunto de sua obra. Em 2006, é premiado pelo Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro com o Golfinho de Ouro, na categoria artes plásticas, “em cerimônia de muita emoção pessoal”.
Considerado o maior artista brasileiro de arte sacra contemporânea, Mario Mendonça figura nos livros Art in Brazil - from beginnings to modern times, publicado pela Biblioteca do Congresso, em Washington; Via Sacra da Justiça, de Leonardo Boff; Arte Brasileira, de Walmir Ayala; e Le Brésil par ses Artistes, Editora Nórdica. Ilustrou os livros Branca Dias – O Martírio, Dom Quixote para Crianças e O Alienista, de Arnaldo Niskier.
Em 2011, é inaugurado o Instituto Mario Mendonça, em Tiradentes, que oferece ao público a apreciação de cerca de mil obras de arte contemporâneas, brasileiras e estrangeiras.
DEPOIMENTOS
“Mario é um pintor autêntico, irmão daqueles que deixaram sua presença pelo mundo povoando altares, sacristias, paredes conventuais, adros de monastérios e salas de museus com a sua vivência religiosa como tema, como substância, como definição.” Paschoal Carlos Magno, escritor e crítico de arte – Anos 1960
“O Tema sacro da pintura brasileira contemporânea atinge em Mario Mendonça seu mais alto momento.” Walmir Ayala, poeta e crítico de arte – Anos 1980