O projeto Língua Viva busca ser um ponto convergente entre linguagem, psicanálise e processo criativo. A cada encontro os psicanalistas Marília Flores e Abílio Ribeiro desenvolvem um aspecto especifico da nossa língua. A arte intriga, faz enigma e provoca. À luz da psicanálise serão comentados ângulos e caminhos em torno do ato de criação e da experiência de fruição da arte, tanto para o artista quanto para o espectador/leitor.
TEMA: O desejo e o erotismo no caminho para o ato final
DATA: 22/05/2024
“Por mais longa que seja a vida de um ator, ele não tem como declarar: ‘Estou pronto’. E se o fizer, não é do ramo. Embora no teatro se repita, dia após dia, o mesmo gesto, a mesma intenção, o mesmo texto, dentro da mesma encenação, repentinamente ‘uma faísca inesperada de percepção’ revela outra zona a seguir _ que depende da sua inquietação” (Fernanda Montenegro).
O último ato de um espetáculo sempre nos reserva algumas surpresas, algumas revelações e reviravoltas. É a vida que imita a arte! Somos atores de uma peça de nem tanto improviso que tem prólogo, ato, epílogo.
A genialidade de Freud entendeu o movimento pulsional no sentido da vida. Vivemos entre duas mortes, entre o nascimento e o ato final. Como um rio que corre para o mar, a vida enfrenta os desfiladeiros e penhascos, a densidade das florestas, os campos verdes e desertos. No caminho para morte, eros nos detem nos objetos que escolhemos da língua do Outro que nos constitui. Nos apegamos aos significantes com que escrevemos nosso texto trágico.
Desde o nascimento há sempre perdas, há sempre o limite do homem frente ao real. Mas, há um tempo marcado por perdas que são mais próximas e constantes. Como enfrentá-las? Como reencontrar o desejo e o erotismo quando o próprio corpo nos faz obstáculo, quando perdemos nossos entes queridos?
Quando a fantasia nos parece improvável, inventamos com o real das dores, das perdas e também com as marcas de memória para realizar o ato final. Vive mais, e isso não quer dizer a soma dos anos, quem ainda pode guardar a capacidade de ser fiel ao seu desejo.
Annie Ernaux em O Jovem nos ensina sobre o erotismo da mulher considerada madura com um rapaz: “ Muitas vezes fiz amor para me obrigar a escrever… ao fim da espera mais violenta de todas, a de um orgasmo, eu pudesse ter certeza de que não havia orgasmo mais intenso que a escrita de um livro”.
Contra a morte também escreve Gabriel García Márquez: “Tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não são os amores felizes, mas os contrariados”... “A idade não é a que a gente sente”... “O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança” (Memória de minhas putas tristes).
O ato final é uma invenção frente à finitude: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto” (Fernanda Montenegro, Prólogo, ato, epílogo).
TEMAS ANTERIORES
TEMA: Impasses com a sexualidade na atualidade
DATA: 10/04/2024
O que Freud descobriu ao longo da sua prática clínica foi que o sexual não se reduz ao biológico e não se deixa inteiramente regular pelo discurso moral sexual.
Há algo na sexualidade que sempre traz impasses para o sujeito e para o social. Temas como: monogamia, novas configurações familiares, homossexualidades, identidade de gênero, serão propostos em nossa roda de conversa.
TEMA: Onde está o pai: no social e no inconsciente?
DATA: 31/08/2023
Freud afirmou, em “O Mal-estar na Cultura”, que não poderia imaginar uma necessidade maior do que a do amparo de um pai. A imagem escolhida é a obra “A cena do dilúvio” de Joseph-Désiré Court (1827), nela um homem tenta salvar o pai do afogamento em detrimento de sua esposa e de seu próprio filho.
O anseio pelo pai pode ser num “só depois”, uma contrapartida ao ímpeto de aniquilá-lo ou anulá-lo. Em Totem e Tabu, Freud propõe que as consequências do assassinato e incorporação do pai num banquete por seus filhos é a culpa e a identificação com ele. O pai morto é o pai simbólico, o pai que intervém no inconsciente enquanto agente da castração, como lei que permite o acesso ao desejo.
Em tempos da evaporação da dimensão simbólica e social do pai, o que poderia intervir sobre o imperativo de gozo que rege nossos dias? Um gozo desenfreado que impede o destacamento de uma brecha, um corte, um limite como condição para a falta e o desejo.
Neste cenário, fazemos apelos e evocamos a figura imaginária do pai encarnada em líderes políticos e religiosos, autoridades de vocação totalitária, personalidades da riqueza e etc. Enquanto procuramos um pai bem sucedido para os nossos anseios, não percebemos que o pai é uma função inconsciente de limite, que opera pela lógica da castração nos indicando que não podemos tudo. Neste sentido, onde está o pai que possa dizer não ao império e imperativo de gozo insensato que nos consome além de nossos limites?