Alvo de violência e censura quando estreou há meio século, o musical de Chico Buarque reestreia na cidade nesta sexta-feira
Pedro Tinoco, Especial para O GLOBO
Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
07/11/2019 - 04:30 / Atualizado em 07/11/2019 - 11:08
RIO — Só podia ser 1968 . Nos tempos beligerantes de ditadura, a peça de estreia do jovem astro da MPB ganhou montagem provocadora, e militantes à direita sentiram-se à vontade para silenciar os atores na base do sarrafo. Até o final daquele ano, a violência reinante seria regulamentada com o Ato Institucional nº 5, pontapé inicial para o recrudescimento da repressão. Por essas e outras, “Roda viva”, de Chico Buarque, tornou-se um marco. E, curiosamente, volta ao circuito junto com debates (ameaças?) em torno de um “novo AI-5” e outras medidas “energéticas” . O espetáculo, mais uma vez dirigido por José Celso Martinez Corrêa, ocupa a Grande Sala da Cidade das Artes de amanhã a 1º de dezembro.
“Roda viva”, nas palavras de seu diretor, tem algo de um “auto religioso, épico”. Ao longo de quase quatro horas, o público acompanha as aventuras de Benedito (Roderick Himeros), entre os desígnios do Anjo (Gui Calzavara) e do capeta (Zé Ed), ao lado de sua esposa Juliana (Camila Mota) e do amigo boêmio Mané (Marcelo Drummond).
É possível definir como épico também o périplo para trazer a produção ao Rio. Com 64 integrantes, entre atores, técnicos, músicos e a equipe de filmagem (parte da peça é reproduzida ao vivo, em telões que fazem parte do cenário), a trupe do Oficina desembarcou na cidade com a cara e a coragem. Boa parte da verba para bancar a temporada carioca ainda depende do crowdfunding aberto no site “Benfeitoria”.
— Foi mais ou menos assim com “O rei da vela”, no ano passado. Quando soubemos do assassinato de Marielle, em 14 de março de 2018, decidimos que tínhamos que ir para o Rio. Um mês depois, estreamos aqui na Cidade das Artes — conta a atriz Camila Mota.
Dessa vez, o esquema é de guerrilha. Após conseguir apoio de uma companhia de ônibus que faz o trajeto São Paulo-Rio, eles também pegaram um empréstimo com a Casa Um, antigo espaço de acolhida de população de rua que virou centro de cultura, para alugar espaços para hospedar a equipe — o resto do grupo está em casas de amigos.
— Mas ainda falta muita coisa. O orçamento dessa vinda ao Rio está em torno dos R$ 700 mil e nós só captamos, até agora, via crowdfunding, R$ 52 mil — observa Camila.
Nada disso desanima o grupo. Desde a reestreia de “Roda viva”, em São Paulo, no dia 6 de dezembro de 2018, numa temporada bem-sucedida que durou quase um ano, o clima é de festa.
— A primeira montagem era provocadora, a gente mexia mesmo com o público, jogava flores nos espectadores, dizendo “jogamos flores aos mortos”. Agora, o sentimento é de comunhão, estamos todos, no palco e na plateia, doidos para sair dessa sinuca, da arapuca do poder — explica Zé Celso.
Faz sentido marcar essa diferença por toda a trajetória do espetáculo no fim dos anos 1960. Na época, Chico Buarque, aos 24 anos, convivia com um hit estrondoso — “A banda”, vencedora do II Festival da Música Popular Brasileira — e certo fastio. O astro carregava a incômoda sensação de que era consumido pelas engrenagens do show business . Veio daí a inspiração para um musical sobre a acidentada trajetória do cantor e compositor Benedito da Silva — ou Ben Silver, ou Benedito Lampião, mudando de estilo ao sabor do mercado.
Em janeiro de 1968 , os ensaios para a estreia no Rio, no Teatro Princesa Isabel, viravam happenings, com presença de gente como Mick Jagger e Miriam Makeba. Da temporada festiva no Rio, com Antonio Pedro, Marieta Severo, Paulo Cesar Pereio, Pedro Paulo Rangel e Zezé Motta, entre outros atores, a peça seguiu para São Paulo com alterações no elenco. Na capital paulista veio o primeiro susto. Em julho, um grupo armado do Comando de Caça aos Comunistas decidiu perseguir artistas no galpão do Teatro Ruth Escobar. O espaço foi depredado, e atores como Marília Pêra, brutalmente espancados.
Três meses depois, as cenas de violência se repetiram durante curta temporada no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre: o elenco foi agredido e expulso da cidade. Logo em seguida, o espetáculo seria oficialmente censurado. Em matéria no jornal “Correio da Manhã”, o coronel Aloísio de Souza, então chefe da censura federal, justificou a decisão definindo a peça como “um amontoado de palavrões, cenas imorais e frases de incitamento contra o regime”.
Nesta versão para o século XXI, o tom satírico, forte desde a primeira adaptação, mira em novos alvos, do sertanejo universitário aos políticos da vez. A crítica à televisão ganhou a companhia de mecanismos atuais do sistema, a exemplo da internet, com seus memes e fake news.
Na trilha sonora, temas conhecidos, como a faixa-título e “Sem fantasia”, dividem espaço com o divertido “Iê iê iê bíblico”, do repertório original e jamais gravado, além de composições da própria companhia. Duas novidades são do autor do espetáculo: “Caravanas”, que dá nome ao mais recente disco de Chico Buarque, e “Cordão”, hino de resistência do LP “Construção”, de 1971. Tudo interpretado ao vivo por sete instrumentistas e um coro com seus 16 integrantes.
— O coro original fez a peça e influenciou o Oficina para sempre. Era um bando de loucos. As meninas fãs do Chico iam assistir e ficavam chocadas. Eles eram 68 em estado puro, tanto que foram massacrados. A “roda viva”, naquele tempo, foi o sistema opressor, agora nossa interpretação é oposta. Roda viva é a vida, é mudança permanente, um alívio — discursa o diretor.
Como em 68, o Oficina encena “Roda viva” depois de “O rei da vela”. Como em 68, a sociedade anda envolvida em discussões quentes sobre censura — e até AI-5. E Chico Buarque, por onde anda?
— Ele nos apoiou em tudo, mas não veio ver, acho que não vem. Ele acha a peça fraca. Nunca o primo canto de um poeta é fraco. A primeira obra é a celula mater , traz por dentro tudo o que vai acontecer depois — diz Zé Celso.
Marcelo Drummond, que vive o gozador Mané, ainda arrisca um convite.
— Se o Chico não gosta da peça, pode vir sem se preocupar. A gente também não gostou, mudamos um monte de coisa — diverte-se o ator, em tom de galhofa.
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